quarta-feira, outubro 05, 2005

Canto de Orfeu

Se não posso soltar a lágrima guardada de uma noite distante, é como se ela se impregnasse na alma, no próprio ar que respiro e se multiplicasse em lavas vulcânicas de suspiros que jorram num rompante quando em meu caminhar distraído por um trecho de rua, próximo ao meio-fio, uma flor subterrânea insiste em brotar em um canteiro vazio; e a lua e os faróis e a lembrança de um rosto, uma voz, um corpo brilhante envolto em lençóis e toda a luz noturna parecem se concentrar em um brilho no canto do olhar que não sei mais se é a fagulha de um instante de recordação de uma canção muito antiga, escondida com esforço nas profundezas de mim mesmo, ou a força de algo maior e palpitante, que transpassou o coração como um falso punhal em sua transparência romântica para virar ferida na carne e no espírito quando a paixão deixou de ser semântica e a atingiu em cheio; atingiu primeiro ela, que não sei bem se estava à minha procura ou em busca de alguém como eu, perdido em sua própria noite, que encontrei o dia quando a fiz sentir-se viva e plena de sentido logo assim que ela sorriu e abriu a janela da alma sem se deter nas sombras, somente para me encontrar; foi por mim que ela brotou como uma flor solitária que não pude cuidar e perdeu suas pétalas nas lágrimas do tempo; e eu acompanhei seu renascimento e sua nova florescência à distância, contemplando-a em silêncio nas madrugadas, quando adormecia, e em uns tantos momentos ardentes do dia, esperando que suas mãos cansassem de abraçar ausências, suas lágrimas secassem e seus lábios não proferissem mais o meu nome, para então entrar e ficar ali parado, com minha lira fria, respirando em sua respiração e mergulhado na música silente de minha dor, sem poder tocar ou cantar porque era proibido falar de amor.
Claudia Rio

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